Por Antonio Archangelo / Rede APJ

Documento disponível no site do WikiLeaks (Reprodução)
Documento disponível no site do WikiLeaks (Reprodução)

Cena típica de ficção nos anos de Guerra Fria, o interesse norte-americano por países latinos se estendeu sobre municípios do interior de São Paulo no início da década de 70, quando algumas cidades foram excluídas da área abrangida pela Overseas Private Investiment Corporation (OPIC), instituição de investimentos do governo americano que mobilizava capital privado norte-americano em prol do avanço da política externa dos EUA.

Os documentos diplomáticos, emitidos em plena Ditadura Militar, foram disponibilizados, na internet, no site do Wikileaks Public Library of US Diplomacy (PlusD), e fazem parte da revisão realizada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos dentro do processo de desclassificação sistemática de relatórios com mais de 25 anos. Neste método, documentos confidenciais são recategorizados e disponibilizados à população.

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Classificados originalmente como “Limited Oficcial Use” (Uso Oficial Limitado), e revisados em 30 de junho de 2005, os telegramas ao governo americano elencam municípios paulistas que deveriam receber indústrias americanas e outros que deveriam ser excluídos da área de abrangência da organização.

Em um dos telegramas, a que a reportagem teve acesso, emitido no dia 7 de fevereiro de 1974, às 20h35, supostamente pelo Consulado Geral, identificado pela sigla “ConGen”, evidência suposto impasse na adoção de nova metodologia de inclusão e exclusão de municípios paulistas para “o direcionamento de grandes investimentos norte-americanos”.  Ao argumentar, o Consulado cita que o tipo de cobertura sugerida fomentava graves problemas locais, aparentemente uma disputa política entre autoridades políticas.

Esses problemas essencialmente giravam em torno do processo de seleção dos municípios, muitas vezes disputa entre cidades e prefeitos vizinhos.  “Em alguns casos, mesmo com nossas revisões, certos municípios são excluídos da lista, onde outros com limites oficiais vizinhos são incluídos. Na medida em que a disponibilidade de cobertura da OPIC é um fator nas decisões de localização das plantas de empresas norte-americanas, essa listagem por município servirá para orientar as empresas americanas a determinados municípios e desviá-las de outros. Mesmo nos casos em que a cobertura não é um fator determinante, os agentes de um município que perde um novo grande projeto de investimento americano a um município vizinho são susceptíveis de culpar a decisão sobre a indisponibilidade de cobertura da OPIC”, aponta o documento.

Neste sentido, o telegrama aponta que os problemas detectados “seriam em grande parte minimizados pela abordagem geográfica coordenada proposta inicialmente, uma vez que seria vista como mais ‘objetiva’ e, portanto, seria mais defensável. Fugindo de áreas, que para os agentes de campo, já teriam sido beneficiadas pela industrialização, o documento cita a inclusão das cidades da Grande São Paulo, que assim, deixariam de ter prioridade nos investimentos industriais americanos. Mencionado, para isso, a inclusão de Embu-Guaçu, Arujá e Barueri.

No Vale do Paraíba, a lista de municípios que deixariam de ser prioritários para receber os investimentos se encontravam ao longo da Rodovia Presidente Dutra, o qual o documento elencava como um “corredor industrial”. O Consulado pedia a inclusão de Caçapava, Aparecia, Cachoeira Paulista, Silveiras, Queluz e Areias. A lista faz menção, ainda, aos municípios de Roseira, Cruzeiro, São José, Taubaté e Guaratinguetá.

Na região administrativa de Campinas, os americanos consideravam que os “três corredores industrializados que se estendiam para o norte e oeste, com crescimento substancial nos últimos cinco anos, incluindo grandes plantas fabris” auxiliavam na tomada de decisão para que cidades de Paulínia, Sumaré, Nova Odessa, Americana, Santa Bárbara d’Oeste, Piracicaba, Iracemápolis, Limeira, Cordeirópolis, Santa Gertrudes, Rio Claro, Mogi Mirim e Mogi Guaçu fossem excluídas da lista de abrangência da OPIC, conforme o telegrama.

No litoral, o pedido era para a inclusão do Guarujá, que já teria se beneficiado por instalações relacionadas ao transporte marítimo de carga.

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Inteligência Estratégica

O Wikileaks mostra, também, que o trabalho de inteligência competitiva na região continua. Desta vez, empresas privadas como Stratfor monitoram notícias relacionadas a empresas que receberam ou recebem aporte do capital americano. Os últimos e-mails, de 2011, também tornados públicos pelo Wikileaks, apontam para situação atual do mercado brasileiro, incluindo a venda de empresa de fibra de vidro para uma estatal chinesa. As trocas de informações, mais recentes, aconteceram, de acordo com os documentos, entre um especialista brasileiro da empresa de consultoria Stratfor, além de uma “investigadora”, da mesma empresa, que já atuou no escritório do senador norte-americano Carlos Uresti (Democrata).

Informações valem dinheiro, diz advogado

Para Nicolas Yamagata, Head de serviços de análise de dados da Plugar Informações Estratégicas, a atividade formal do que hoje vem a ser inteligência estratégica teve início da década de 50, sendo estruturada dentro da área de administração. “Na década de 60, tínhamos a Guerra Fria e a questão da espionagem. Não tínhamos a internet, então era comum que a coleta de dados fosse feita por agentes em campo”, cita ao comentar os telegramas.

“Hoje os modelos são diferentes da época da Ditadura, por exemplo. Temos a criação de Câmara de negócios. As análises mercadológicas são feitas com uma gama grande de dados com o avanço da internet e a democratização de dados. Antes a coleta era feita através de pessoas e informações públicas, informações legais” disse.

O advogado  Jair Jaloreto
O advogado Jair Jaloreto

Sob outro ponto de vista, a troca de informações estratégicas e privilegiadas causa uma concorrência desleal, opina o especialista em Direito Penal Econômico Internacional, Jair Jaloreto. “As informações trazem benefício econômico, uma favorecimento para este tipo de remessa antes e depois. Se a pessoa é beneficiada, já que provavelmente alguém vendeu estas informações, podemos falar em corrupção passiva, improbidade…”, cita Jaloreto.

“As informações valem dinheiro, pois causam uma concorrência desleal, pelo que aparenta com o acesso a estes dados [veja página 3], as empresas americanas acabaram saindo na frente dos concorrentes, de certa forma”, pontua.

A Lei federal 7.170/1983, sancionada pelo presidente João Figueiredo, tipifica crimes de espionagem. Para o mecanismo legal, em seu 13º artigo: “comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos” rendem pena de reclusão, de 3 a 15 anos. Para quem facilita, culposamente, a prática a pena é de detenção, de 1 a 5 anos.

Consultada por e-mail, o governo brasileiro, o governo de São Paulo e a embaixada americana no Brasil não comentaram sobre o vazamento dos telegramas.

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