Extração de minérios causou desorganização social de comunidade – Fernando Frazão/Agência Brasil.

Por Pedro Rafael Vilela (Enviado especial, Boa Vista, Roraima) – A presença do garimpo ilegal no Território Yanomami causa múltiplos impactos na vida social dos indígenas. A crise humanitária é mais visível no estado de saúde delicado, especialmente de crianças e idosos, como visto nas últimas semanas, mas alcança ainda dimensões culturais desse povo. Na última semana, a reportagem da Agência Brasil visitou algumas vezes a Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista, e também esteve no próprio Território Yanomami, no Polo Base de Surucucu, entre quinta (9) e sexta-feira (10). Durante as visitas, conversou com os indígenas e especialistas para entender melhor como eles percebem esses impactos. 

“Água suja para comer, estraga o peixe. Crianças muito fracas. Água bebe-se suja e barriga dói muito”, diz Enenexi Yanomami, que tenta descrever a situação vivida por seus parentes na terra indígena. A Agência Brasil encontrou o jovem indígena, de 21 anos, na entrada da Casai. Segundo ele, já passavam de 60 dias sua estadia na capital para acompanhar familiares doentes. O retorno ao território, que depende de transporte aéreo, não tinha previsão. “Faltam mais horas de voo para Surucucu”.  

Para ele, a presença do garimpo é o que tem causado os danos que afetam seu povo. “Agora, tem que tirar garimpo. Quando tirar, tranquilo. Tem muito garimpo lá, [tem que ser] proibido”. 

Mãe de duas crianças internadas na Casai, Louvânia Yanomami já perdeu a conta de quanto tempo está longe de sua terra. Sem previsão de alta, ela recebeu alerta dos médicos de que, se voltar, pode colocar a vida do filho menor em risco. A criança, que tem entre 1 e 2 anos, apresenta quadro de desnutrição severa e inchaço do abdômen. 

Surucucu (RR), 09/02/2023 - Indígenas yanomami acompanham deslocamento de equipes e material da Força Nacional do SUS no aeroporto de Surucucu. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Surucucu (RR), 09/02/2023 – Indígenas yanomami acompanham deslocamento de equipes e material da Força Nacional do SUS no Aeroporto de Surucucu – Fernando Frazão/Agência Brasil.

“Eu estou muito cansada, tem muita gente aqui [Casai], dá pra perceber. É uma situação difícil. Não vou deixar porque é meu [filho] e não posso levar porque ele vai morrer”, relata, angustiada, com ajuda de um intérprete. Em janeiro, a Casai chegou a abrigar mais de 700 pessoas, mas o local tem capacidade para pouco mais de 200. Houve uma redução dessa superlotação, mas o espaço ainda registra a presença de mais de 500 pessoas, segundo balanço da semana passada do Centro de Operações de Emergências (COE) do governo federal. 

Quem também reclama dos danos ambientais trazido pela exploração ilegal de minérios é Arokona Yanomama, com quem a reportagem conversou na Casai. Ele cita como o maquinário pesado de dragas e tratores afugenta animais de caça e polui a terra. “Cheiro ruim. Morre caça, morre tudo. A terra não é boa, é muito feio. Máquina de fumaça entrou, por isso cheiro muito ruim. Contaminaram terra, contaminaram água, poluíram peixe”, relata. Agora, para caçar um porco do mato, ele tem que andar por pelo menos 50 quilômetros para se afastar da área mais deteriorada.  

Referência perdida

“O garimpo vai justamente atacar a cadeia alimentar básica dos yanomami. Eles são um povo de mobilidade territorial, vivem da caça, da pesca, da coleta e da agricultura. Nada mais triste, então, do que um caçador yanomami não ter caça para suprir a família”, explica a antropóloga Maria Auxiliadora Lima de Carvalho. Ela trabalha há mais de 20 anos com o povo yanomami, em Roraima.

“O povo yanomami nunca precisou de doação de alimentos para sobreviver. Todo esse cenário de vulnerabilidade foi provocado. O maior mal ainda é a presença do garimpeiro, do garimpo”, afirma o secretário especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba, que visitou o território na última quinta-feira (9).

Até mesmo alguns dos rituais mais sagrados dos yanomami estão sendo drasticamente abalados pela atividade garimpeira e a desassistência generalizada em saúde dentro do território. É o caso das cerimônias fúnebres. Os yanomami não enterram seus mortos. Eles cremam os corpos de seus familiares falecidos e, depois, trituram os ossos até virar pó. O processo pode levar semanas e, muitas vezes, inclui uma fase final em que a comunidade realiza um ato de tomar mingau de banana com as cinzar do ente falecido. 

Surucucu (RR), 09/02/2023 - Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami.  Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Surucucu (RR), 09/02/2023 – Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami – Fernando Frazão/Agência Brasil.

“Os yanomami fazem questão dos rituais fúnebres, mas os mortos são tantos que não está havendo nem tempo para chorá-los”, afirma a antropóloga. Essas cerimônias podem incluir também a presença de visitantes de aldeias diferentes e, nesses casos, os anfitriões costumam oferecer um animal de caça, o que tem ficado escasso nas regiões afetada pelo garimpo. 

A entrada do álcool na cultura yanomami, que não é recente, mas tem se agravado, é outro fator desestabilizador. O kaxiri, bebida  feita de macaxeira cozida, não alcoólica, e muito tradicional, passou a ser fermentada pelos indígenas para ficar com alto teor de álcool, por influência dos garimpeiros, ainda durante a primeira invasão ao território, no fim da década de 80. “Isso fez aumentar casos de violência contra as mulheres e de violência de uma forma geral”, explica Maria Auxiliadora. Também interferiu na produção agrícola, fazendo com que indígenas aumentassem a plantação de macaxeira para produzir a bebida, ampliando o ciclo do consumo de álcool nas aldeias. 

Juventude assediada

A antropóloga também observa outro tipo de desestruturação comunitária causada pelo garimpo. No primeiro grande surto de garimpagem ilegal na Terra Indígena Yanomami, a partir da segunda metade da década de 80, a maior parte da população de indígenas era formada por adultos. Atualmente, no entanto, a base da pirâmide etária ficou bem mais numerosa, com forte presença de adolescentes e jovens. No entanto, a grande maioria das escolas dentro do território foi desativadas pelo governo do estado. 

“As políticas públicas não chegam para esses jovens. E eles são jovens, querem aventuras. Com isso, o garimpo assediou enormemente essa juventude, com acesso a armas, que eles apreciam muito, e outros objetos”, acrescenta a especialista.

Ela cita o caso de assédio sexual de garimpeiros contra as mulheres indígenas, que observou durante trabalho de campo na comunidade, onde permaneceu por vários anos, entre 2002 e 2009. Segundo a antropóloga, as denúncias que vêm sendo reveladas agora, com a explosão de garimpo no território, são bem prováveis. 

“Com o garimpo o tempo todo e cada vez mais, é bem possível que eles tenham feito sedução. Elas gostam muito de sabonetes, óleo para cabelo, comida. Então, essa troca por relação sexual, seja consentida ou não, é desigual, porque há posições de poder bem claras”, argumenta.

O governo federal investiga o caso de 30 meninas yanomami que estariam grávidas de garimpeiros que atuam ilegalmente no território.

Esperança

Surucucu (RR), 09/02/2023 - Indígenas yanomami acompanham deslocamento de equipes e material da Força Nacional do SUS no aeroporto de Surucucu. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Surucucu (RR), 09/02/2023 – Indígenas yanomami acompanham deslocamento de equipes e material da Força Nacional do SUS no aeroporto de Surucucu – Fernando Frazão/Agência Brasil.

Em meio ao caos vivido pelos yanomami, a esperança no futuro passa pela reativação das escolas na região, fechadas há mais de uma década.  

“Aqui tinha escola, eu ainda lembro”, afirma Ivo Yanomami, tuxaua (cacique) na comunidade de Xirimifik, com mais de 200 pessoas, grande parte crianças e adolescentes. A aldeia fica a cerca de 15 minutos de caminhada da pista de Surucucu.

A demanda pela retomada das escolas indígenas dentro do território será levada ao governo federal, assegurou o secretário de Saúde Indígena, Weibe Tapeba, durante visita que fez à região.

Colaboraram Flávia Peixoto e Ana Graziela Aguiar, repórteres da TV Brasil.