Imagem ilustrativa. Foto: Agência Brasil.

Folhapress / FRANCO ADAILTON, JOSÉ MATHEUS SANTOS, VINICIUS KONCHINSKI, FERNANDA CANOFRE E MATHEUS ROCHA SALVADOR, BA, RECIFE, PE, CURITIBA, PR, PORTO ALEGRE, RS, E RIO DE JANEIRO, RJ

É uma foto do segundo dos quatro filhos ainda criança que a vendedora ambulante Elaine Costa Silva, 38, segura nas mãos. Yan Barros da Silva, 19, foi espancado e assassinado por um suposto furto de carne, em abril do ano passado. Após ser agredido por funcionários de um supermercado em Salvador, ele foi entregue a criminosos, que o mataram, segundo a polícia.

O desemprego e a crise econômica que atingiram a mesa dos brasileiros, agravados durante a pandemia da Covid-19, têm provocado aumento de casos de crimes famélicos, aqueles motivados pela fome, como furtos de comida.

É o que apontam defensores públicos de capitais ouvidos pela reportagem. Em alguns estados, ainda que sem estatística oficial, o órgão estima ter até dobrado os atendimentos a detidos por furto de itens como carne, manteiga, papel higiênico e desodorante, se comparados ao período anterior à crise sanitária.

Em fevereiro deste ano, um homem foi preso, em Salvador, após supostamente tentar furtar dois pacotes de carne, além de dois desodorantes.

O suspeito havia sido imobilizado por um cliente da rede de supermercados Atakarejo, no bairro da Boca do Rio, sem interferência da segurança do estabelecimento, até a intervenção da polícia.

Para a defensora pública Fabíola Pacheco, que atua na Bahia, há subnotificação dos casos. “Em boa parte dos furtos, a polícia nem sequer é acionada para iniciar os trâmites legais. Os seguranças dos estabelecimentos tomam iniciativa própria de resolverem a situação e nem sempre o desfecho é dos melhores.”

Foi o que ocorreu, segundo a polícia, com Bruno Barros da Silva, 29, e Yan, tio e sobrinho, respectivamente, que acabaram mortos com mais de 30 tiros, por causa de quatro pacotes de carne.

Ambos foram pegos por funcionários do Atakarejo de Amaralina, em Salvador, em uma suposta tentativa de furto dos produtos.

Na ocasião, em vez de acionar a polícia, alguns funcionários espancaram a dupla. Depois, entregaram os dois a um grupo ligado a facções da região, onde foram mortos.

À época, o Atakarejo repudiou o ocorrido, abriu uma sindicância interna, afastou os suspeitos envolvidos, e entregou documentos e imagens de câmeras.

Treze pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público. A Justiça baiana acatou a denúncia. O processo se encontra em fase de instrução criminal para produção e apresentação de provas.

“Espero que eles paguem. Perder um filho de causas naturais é uma coisa. Mas, da forma como aconteceu, não pude nem me despedir com o caixão fechado”, lamenta Elaine, mãe de Yan. “Se eles estavam fazendo algo errado, que chamassem a polícia.”

A fome assombra a família, que vive em um barraco de madeira para quatro pessoas. Por meses, sobreviveram com R$ 400 do extinto Bolsa Família -atual Auxílio Brasil-, porque Elaine não conseguia trabalhar. Depois que voltou à venda dos produtos de limpeza, o orçamento chega a uma média de R$ 600 por mês.

“Fiquei muito tempo sem conseguir dormir, só chorava. Tive que tirar forças de onde não tinha, porque, infelizmente, eu tenho que ser mãe e pai de minhas duas filhas”, diz. “Tenho que manter elas, ajeitar escola, tudo.”

Na Bahia, de março de 2020, início da pandemia, a janeiro deste ano, 108 casos de crimes famélicos foram registrados no sistema do tribunal: 54 em 2020; 51 em 2021; três neste ano, até janeiro.

De acordo com Pacheco, o perfil de quem comete furto de comida é quase sempre o mesmo: pessoas em situação de vulnerabilidade social, desempregadas, negras, mulheres chefes de famílias, moradoras das periferias ou em situação de rua.

A defensora afirma, ainda, que o custo do processo e da prisão é maior para o Estado do que os valores dos produtos furtados, como manteiga, biscoito e leite. “A gente não defende o crime, mas que a punição seja aplicada de forma proporcional.”

Em Goiás, o furto famélico praticamente dobrou na pandemia, segundo o defensor público Luiz Henrique Silva Almeida.

De julho a dezembro do ano passado, das 145 audiências de custódia nas quais o órgão atuou, 27 (18,6%) eram de casos desse tipo. Antes do surto de coronavírus, segundo Almeida, não chegavam a 10%.

“A maior quantidade de pessoas em situação de miséria influencia nesse número”, diz. Os dados incluem furtos de bens essenciais, como remédios e itens de higiene pessoal.

Em setembro, por exemplo, a Defensoria defendeu uma gestante que furtou chocolates e um pacote de canetas coloridas em um supermercado de Goiânia. Presa em flagrante, ela disse que estava com fome e que queria levar as canetas a seu outro filho. Foi libertada após a audiência de custódia e, mais tarde, o caso foi arquivado.

No Ceará, o defensor público Delano Benevides afirma que houve um aumento considerável de atuação em casos de furtos e roubos de alimentos no estado. Para ele, os casos desse tipo foram impulsionados pela pandemia.

“É inegável que houve um aumento nos casos de furto. Infelizmente, a gente presencia diariamente esse tipo de situação. Eu diria que aumentou uns 40% a 50%”, diz.

Para Benevides, o direito penal precisa levar em conta mazelas e problemas sociais. “Uma pessoa que vai furtar comida está passando fome. Costumo dizer que a fome é a situação mais indigna para o ser humano. Não pode ser medida pelo Judiciário.”

No Rio Grande do Sul, não há estatísticas oficiais, mas os casos estão aumentando de forma expressiva, na avaliação do defensor público Andrey Régis de Melo. Há registros em todo o estado de defesas alegando o chamado princípio da insignificância, segundo ele.

Com atuação em Pernambuco, o defensor público José Wilker acredita que o volume de casos de roubos e furtos tenha aumentado no Grande Recife. “Eu arriscaria que pelo menos dobrou o quantitativo de ocorrências dessa natureza.”

Wilker avalia que a Justiça deve também focar a inclusão social de pessoas em vulnerabilidade que praticam roubos e furtos de comidas. “A prisão deve ser o último recurso a ser utilizado.”

Em São Paulo, ainda que sem dados contabilizados, o defensor público e assessor criminal da Defensoria Pública paulista Glauco Mazetto diz que casos de furtos de comida são constantes, o que indica que o problema vai além da pandemia.

“A desigualdade social, o excesso de pessoas em situação de pobreza, que é o catalisador da existência desses furtos.”

No Rio de Janeiro, que ficou marcado na pandemia por cenas como a de pessoas disputando ossos em um caminhão, o aumento de situações de furto de comida é notado por defensores públicos, ainda que sem estatísticas oficiais.

“A gente consegue, sim, identificar um aumento das subtrações envolvendo alimento. São casos que estão relacionados à fome”, diz Lucia Helena Oliveira, coordenadora de defesa criminal da Defensoria Pública.

Também no Rio de Janeiro, quando não há uso da violência, defensores têm usado o princípio da insignificância, segundo Oliveira.

Foi o que ocorreu em um caso envolvendo o roubo de papel higiênico no Rio. A Defensoria impetrou um habeas corpus no STJ (Superior Tribunal de Justiça), citando o princípio da insignificância em razão do baixo valor do item. A corte aceitou o argumento e suspendeu a pena.

Oliveira considera que, sem esse instrumento, pessoas que cometem furto para matar a fome seriam ainda mais penalizadas.

“Não tem como ter outra conclusão a não ser dizer que elas estariam condenadas pela própria fome, pelas próprias necessidades. Então, é de suma importância esse princípio para essas pessoas, sobretudo em um momento de agravamento da crise.”

Consultor de segurança e ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente Silva diz que o furto famélico é um problema social que atinge diversas partes do mundo e sempre existiu. Ele afirma ser favorável à detenção como resposta imediata ao delito cometido.

“Eu tenho uma noção muito clara de que toda transgressão legal precisa receber a devida resposta prevista pela legislação, a resposta dada pelos órgãos do Estado. No caso, a polícia, ela é obrigada, ela não pode decidir isso, se prende ou não. Tem que prender, e isso naturalmente compete a uma decisão judicial: se mantém a prisão, se dá a liberdade provisória.”

Silva acrescenta que a maneira como essa resposta é dada faz parte de grandes debates no Judiciário, incluindo o STF (Supremo Tribunal Federal), o que faz com que as leis se conformem com a realidade.

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