O ano de 2020 começou marcado por tristeza e desafios para o músico rio-clarense Dom Salvador.

Em março, a chegada da pandemia da Covid-19 aos EUA obrigou-o ao isolamento social com consequente interrupção nas suas apresentações diárias no The River Café, no Brooklyn, em Nova York, onde comanda o piano há mais de 40 anos. Em abril, veio a morte da esposa, Mariá, companheira ao longo de 55 anos de sua vida e mãe de seus dois filhos. Mas o antídoto contra uma dose tão grande de desesperança chegou neste mês de setembro, e em forma de cinema.

O filme “Dom Salvador & Abolition” foi escolhido o vencedor do 12º In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical. O longa, dirigido pelos brasileiros Artur Ratton e Lilka Hara, apresenta o dia a dia do cultuado pianista brasileiro em Nova York, cidade onde ele reside há mais de quatro décadas.

Com depoimentos do próprio Salvador da Silva Filho, de familiares e de músicos com quem ele já trabalhou, a obra proporciona “um profundo mergulho em seu universo musical, cheio de groove”. Devido também à pandemia, o festival deste ano foi realizado inteiramente “online”. Mas, mesmo a distância, proporcionou o ânimo de que o artista precisava para se reerguer. “O filme me rejuvenesceu”, explica Dom Salvador.

Talento aclamado

Nascido em Rio Claro em 1938, já desde garoto dava demonstrações de um talento para a música. A ponto de mobilizar sua família para um esforço coletivo para comprar um piano para o menino, apesar de todas as dificuldades financeiras. Começou em bandas de baile aqui na cidade, mas ainda jovem já foi para São Paulo em busca de conhecimento e oportunidades.

Em 1965, já no Rio de Janeiro, integrou o Rio 65 Trio, junto com o baixista Sérgio Barrozo e o baterista Edison Machado. Em 1969 lançou o disco-solo “Dom Salvador”, considerado hoje um “clássico”. Em 1970, fundou o cultuado grupo Abolição, onde com a inovação de adicionar soul e funk ao samba-jazz escreveu seu nome na história da música. Neste período, também fez mais de cem gravações para renomados artistas, incluindo Elis Regina e Roberto Carlos (é dele o piano na canção Jesus Cristo) e ficou conhecido pelas apresentações no lendário Beco das Garrafas.

Em 1973, mesmo com a carreira considerada de sucesso no Brasil, incluindo contratos com grandes gravadoras, toma a surpreendente decisão de partir para os EUA, onde fixou residência com a família. Além das apresentações no River, participou de diversas apresentações ao lado de cultuados nomes do jazz norte-americano, gravou novos trabalhos e participou de vários projetos.

“O jazz não dá camisa a ninguém”

“Dom Salvador & Abolition” retrata a trajetória de um artista aparentemente realizado com as conquistas na carreira e em paz com as escolhas que fez ao longo da vida, mas diante do talento demonstrado por Dom Salvador (e corroborado por vários depoimentos de músicos renomados no filme falando sobre a admiração pelo pianista), sempre ficam no ar os questionamentos sobre sua decisão de deixar os palcos brasileiros e se “refugiar” nos EUA na década de 70.

“Fui por necessidade. A carreira de músico é muito instável. Eu, com a família toda, sai do Brasil com uma mão na frente e outra atrás”, explicou Salvador durante entrevista por telefone ao Jornal Cidade.

A decisão também foi motivada pelo desejo de se aprofundar no mundo do jazz e chegar mais perto de ídolos como Ron Carter. Com vários deles, acabou dividindo o palco ao longo dos últimos anos. “Vim para estudar, ver meus ídolos, tive várias oportunidades de estar com músicos que admiro. Mas também precisava sustentar minha família. O jazz é muito bom, mas não dá camisa a ninguém”.

Nesse ponto que se encaixa a rotina no The River, que trouxe a estabilidade buscada por Dom Salvador.

Na conversa com o JC, o pianista relata também a solidão dos sete meses de isolamento por conta da pandemia da Covid-19, e o sofrimento com a morte da esposa Mariá no último mês de abril: “Sofri muito com a perda da Mariá. Iríamos completar 55 anos de união, uma vida inteira juntos. Foi uma longa batalha desde que ela recebeu o diagnóstico de demência, há 16 anos. Muito difícil também conciliar o trabalho e os cuidados com minha esposa. Quando ela partiu, passei um longo período de tristeza, sem perspectivas”.

O lançamento do filme e o prêmio no festival vieram para colaborar no processo de retomada da rotina e da disposição para viver. Aos 82 anos, Dom Salvador avalia que chegou o momento de investir mais tempo para compor e tocar. “Pretendo focar em novos projetos, retomar trabalhos e parcerias”.

Questionado pela reportagem sobre como se sente diante do fato de que em sua terra natal, Rio Claro, muitos desconhecem sua obra e sua origem, Dom Salvador diz que espera que iniciativas como o filme possam ajudar a tornar sua obra mais conhecida pelo grande público. “Fico triste porque não preservam a história, o trabalho, a obra das pessoas”.

Os sete meses passados dentro de casa não significam que Dom Salvador esteja alheio ao que acontece no mundo. O racismo é uma de suas preocupações. “Lógico que vivi situações de discriminação, racismo, desde minha juventude em Rio Claro. Hoje em dia vivo em Port Washington, em Long Island, e acredito que sou o único negro num bairro onde já vi até bandeira da Ku Klux Klan. Meus familiares que vivem no Brasil me mantêm informado sobre os casos de racismo. Tenho acompanhado aqui também os casos de violência contra os negros. Sinceramente, não sei onde está pior”.

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