Ramon Rossi

Ela tem 72 anos. É ararense. Bisneta e neta de escravos. O Jornal Cidade foi conhecer nesta semana Neuza Maria Pereira Lima (N’ Zinga Sele). De muita garra, a senhora luta, diariamente, para manter vivas as memórias da contribuição e participação dos negros na construção social de Araras, cidade que está entre as primeiras a abolir a escravidão, antes mesmo da promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. A Prefeitura  valoriza esse marco histórico e mantém uma placa na Praça 8 de Abril (região central), referência à data da libertação do último escravo no município.

Voltando à dona Neuza… Entre os projetos coordenados por ela estão: “Zumbi nas Escolas” – desenvolvido nas unidades municipais com palestras e oficinas; “Águas de Oxalá” – que intensifica a luta contra o racismo e intolerância religiosa pelas ruas de Araras; e “Beleza Negra” – incentivador da autoestima dos jovens negros. Todas as ações foram iniciadas em 1992, ou seja, completaram 27 anos. Há, ainda, o Memorial Afro Brasileiro  – que faz um resgate histórico visual, geográfico, didático, fotográfico e oral do que foi a participação do negro na construção social do município. (Veja abaixo a descrição dos projetos na íntegra).

“O único foco de todos eles é o diálogo sobre o combate discriminação racial. Acredito que a sociedade civil conseguiu sim o diálogo aberto por conferências entidades. Mas, a partir do momento que foi aberto por meio da reforma constitucional, as pessoas que estão do outro lado desses poderes de sociedade civil se assustaram com a ação, por que isso se chama democracia. E, pelo menos no Brasil, infelizmente está provado: ninguém que esteve no poder estava interessado em democracia”, disse ela.

A luta de dona Neuza

Neuza, nascida em 1946, contou ao Jornal Cidade que, assim que veio ao mundo, passou suas duas primeiras semanas em uma casa, que até hoje existe na Rua Santa Cruz, no Centro, construída toda de mocambo – técnica herdada pelos escravos que viviam nos quilombos e que erguiam suas casas com uso de barro e madeira. Logo depois, a família se mudou para uma casa no Jardim Belvedere. “Minha avó era ex-escravizada e nasceu seis anos antes da Abolição”.

No município ararense, estudou na Escola Estadual Senador César Lacerda de Vergueiro até o quarto ano. Já aos 13 anos de idade, Neusa foi com a família toda para São Paulo, Capital. Ela nos disse que nunca quis ir embora de Araras, mas que obedecer os pais não era uma opção, E sim uma regra.

Com 20 anos de idade se casou, mas separou aos 24. Voltou à casa de sua mãe para estudar. A partir daí, vieram muitas lutas e o amor na política e vida social. No auge das perseguições dos militares e do crescimento dos movimentos sociais e estudantis, ela começou a cursar a faculdade de Direito, que terminou, mas não gosta de dizer que é uma profissão, pois não a exerce.

Na capital paulista Neuza iniciava suas aspirações políticas. Eram reuniões do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que, naquele tempo, fazia oposição ao Arena – partido dos militares. Naquela época, o sistema permitia apenas dois partidos. Por lá, Neusa teve a oportunidade de conviver com importantes políticos como o constitucionalista Ulysses Guimarães e Leonel Brizola, além de Alberto Goldman, Fernando Henrique Cardoso, entre outros.

Divorciada, negra e com dois filhos, ela afirmou que jamais se deixou abalar pelo preconceito e desafios que a vida colocava no caminho. Chegou até a prestar concurso público em 1972 para o cargo de escriturária do Tribunal de Justiça de São Paulo. “Entrei como escriturária, depois prestei concurso para oficial de seção, outro cargo no judiciário e finalmente escrevente, até me aposentar”, relatou.

Era 1991, voltou para a cidade natal, que jamais saiu do seu coração: Araras. Mas, como tudo na vida não é fácil… “O bate e volta entre São Paulo e Araras ainda era necessário. Precisava do dinheiro para dar de comer aos meus filhos. Depois de um tempo, consegui transferência para o Fórum de Araras, onde fiquei até me aposentar. Hoje, minha vida é dedicada aos projetos e aos meus filhos. Nunca vou parar. Ainda há muito o que fazer”, finalizou.

Projetos sociais

Zumbi nas Escolas

Amparado nas Leis 10.639/03 e 11.645/09, desenvolve nas escolas públicas e particulares, palestras, apresentações culturais, debates e apresentação de vídeos relativos à importância do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro e dedicado ao Zumbi dos Palmares. Também evidencia outros personagens importantes na história da luta contra a discriminação racial, levando em conta a resistência e a força do Movimento Negro Brasileiro, entre outros movimentos sociais na busca da igualdade.

Acervo Afro Brasileiro

Resgate histórico visual, geográfico, didático, fotográfico e oral do que foi a participação do negro na construção social do município, levando-se em consideração fatores “materiais e imateriais” (tombamentos e registros de locais, depoimentos, objetos artísticos e de uso comum etc) como  exemplo pedagógico e sociológico que garanta a intervenção em fatos ou fatores sociais que possam gerar exclusão. Valorização e reconhecimento dos(as) historiadores(as) que antecederam ao trabalho específico e organizado na própria comunidade negra.

Beleza Negra

 Concursos Miss/Mister Afro e Dandara, que propõem trabalhar a autoestima, afirmação e conscientização profissional, dando visibilidade à imagem positiva das crianças, adolescentes, jovens e adultos, e esclarece sobre o direito à cidadania e participação no mercado de trabalho em publicidade, comunicação, moda e outras áreas da beleza.

Águas de Oxalá

Projeto que visa a compreensão a respeito das raízes e ancestralidade, que tanto no passado como no presente e muito mais no futuro, foi e será vital para a  sobrevivência da história do negro na formação cultural e social dos municípios, estados e país. Essa resistência permanece viva nas atitudes dos africanistas e garante a comunicação entre os religiosos de Matriz Africana e a sociedade no geral, contribuindo para a autoafirmação e cidadania, criando laços objetivos na defesa do direito à liberdade religiosa,  buscando pela fé o diálogo com outros segmentos e a paz. Entretanto, a importância de maior valor é fortalecer mecanismos de ordem interna e externa das entidades e poder público envolvidos, desestimulando o preconceito e a discriminação.

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