Na sala da avó, no coração de Santa Gertrudes, um menino descobria o mundo sem sair do lugar. Entre móveis simples, olhares atentos e a proteção do lar, algo pulsava diferente dentro de Thierry Blannchard. Era o corpo que queria falar antes mesmo das palavras; era a arte que nascia sem nome, mas com destino certo: a dança.
Hoje, prestes a completar 25 anos, Thierry é um nome em ascensão no balé internacional. Com passagens por escolas renomadas, como o Bolshoi em Joinville, e atuações em companhias de destaque, ele leva a disciplina do clássico, a expressividade da dança contemporânea e a essência brasileira a cada palco que pisa — inclusive agora, em Nova York, onde integra o elenco do Ballet Hispánico como artista convidado.
Mas sua história não é feita apenas de conquistas. É também feita de resistência, de enfrentamento ao preconceito, de apoio familiar, de professoras que apostaram em seu talento e de uma comunidade que se vê representada em seus passos.
A seguir, Thierry revisita os momentos mais marcantes de sua trajetória — e reforça que, mesmo longe, Santa Gertrudes continua sendo parte essencial de quem ele é.
O que representa Santa Gertrudes na sua trajetória pessoal e artística?
Sempre levo Santa Gertrudes comigo com muito carinho. Foi onde tudo começou, onde eu me descobri como bailarino e, mais tarde, como artista. Claro que, por ser uma cidade do interior, o começo foi difícil, por conta do preconceito e até da falta de acesso à informação sobre o balé — algo fundamental para quem realmente quer seguir a profissão. Mas também foi onde fui muito abraçado e respeitado.
Como foi seu primeiro contato com a dança?
Por ser muito novo, não me recordo bem, mas minha mãe diz que vi algo na televisão e disse para ela que era aquilo que eu queria fazer. Não sabia exatamente o que era, mas aquilo me cativou. Desde a primeira aula, senti que era o que eu queria, porque despertou algo em mim que nunca havia sentido. Eu era um menino tímido, e acredito que a dança foi essa voz que eu ainda não tinha encontrado em mim.
Você enfrentou preconceitos nesse início?
Sim, várias vezes — por ser uma cidade pequena do interior, por ser um menino dançando e, principalmente, pela falta de informação sobre arte, que infelizmente é escassa no nosso país. Ouvi piadas e até insultos na escola, principalmente no início, mas minha vontade era tão grande que tudo isso se tornava irrelevante diante do sonho que eu tinha. Minha família sempre foi meu maior incentivo desde o primeiro dia, e, com o tempo, fui ajudando a mudar a visão das pessoas ao meu redor.
Quais foram suas primeiras referências na dança?
Débora Goes Valdanha foi minha primeira professora e quem me acompanhou até o Bolshoi. Ela foi meu primeiro contato real com a arte da dança, e devo muito a ela em muitos sentidos. Depois vieram Maria Fernanda Faria e Ariana Canavesi, ainda em Santa Gertrudes, na Escola Municipal de Dança Elizandra Bellotto. Um bom bailarino precisa de base, disciplina, foco, persistência — e, principalmente, amor pela profissão e pela arte. Aprendi muito sobre tudo isso com elas.
Como foi o caminho até a escola do Balé Bolshoi?
Quando decidi que queria ser profissional, vi Rio Claro como um novo horizonte. Encontrei o Studio de Dança Tatiana Leite, onde conheci novas faces da dança, de forma mais aprofundada. Participei de competições e festivais, e tive mais acesso a esse mundo que eu sonhava. Sempre digo que foi uma loucura, porque, mesmo querendo muito, não acreditava que conseguiria — vindo do interior e competindo com crianças do Brasil todo e até do exterior, e de escolas renomadas e com muita estrutura. Mas, incentivado pelo professor Marcelo Camargo, fiz o teste. O Bolshoi foi um divisor de águas na minha vida e carreira, por ter me dado a oportunidade de me tornar profissional em uma das melhores escolas do mundo.. O início não foi fácil, eu tinha 15 anos, longe da família, em um lugar que antes só existia nos meus sonhos. Precisei me esforçar muito para provar que era tão capaz quanto meus colegas — e consegui. Me formei em 2019.
Como você vê hoje sua relação com o Brasil e com sua identidade?
Quando a gente sai do Brasil, percebe que representa não só a si mesmo, mas o país inteiro. Estar fora me fez ter ainda mais orgulho de ser brasileiro. Claro que há saudade, mas também vem esse senso de pertencimento e de valorização das minhas raízes. Tenho muito orgulho de estar onde estou.
Há alguma conquista que você considera inesquecível?
Com certeza, dançar Chroma, do Wayne McGregor. Sempre sonhei com esse balé e achava que nunca o alcançaria. Ele é performado pelas maiores companhias do mundo, como o Bolshoi da Rússia e o Royal Ballet de Londres. Dançá-lo foi a realização de um sonho, não só meu, mas daquele Thierry adolescente que assistia à coreografia pelo computador.
Nos bastidores, o que o público não vê?
Sacrifícios, desgaste emocional e físico, distância da família, cuidado rigoroso com o corpo, busca incansável pela perfeição. A luta é diária. Mas sempre soube que minha trajetória não era só minha — carrego comigo a força de muitas pessoas que acreditam em mim. Isso faz toda a diferença.
Como tem sido sua experiência em Nova York?
Foi um choque no início — outro país, outra cultura, outra técnica. Mas está sendo uma experiência enriquecedora. Aqui, os artistas são valorizados de uma forma que nunca vi no Brasil, e que nos entristece, já que temos muitos talentos. Sempre admirei o Ballet Hispánico, e hoje, fazer parte dele, é uma conquista imensurável.
Como é sua rotina como bailarino profissional atualmente?
Trabalho diariamente das 9h às 16h30, com ensaios, aulas e fisioterapia. Depois, ainda vou para a academia. Em semanas de espetáculo, chegamos ao teatro às 12h e saímos às 22h. Amo Nova York pela diversidade. Encontro pessoas do mundo todo — especialmente brasileiros. Isso é muito enriquecedor.
Quando retorna a Santa Gertrudes, como é esse reencontro?
Tenho minha família, amigos de infância e professores em Santa. Sempre que volto, mesmo que por pouco tempo, visito escolas onde estudei e compartilho o que aprendi. Já dei aulas, workshops e palestras. Amo me ver em outros jovens bailarinos. É muito bom retribuir. E também gosto de, por um tempo, deixar de lado o bailarino de Nova York e voltar a ser o menino da sala da avó. É um respiro necessário estar com quem amo.
Se você pudesse mandar um recado ao Thierry criança, que sonhava em dançar, o que diria?
Por incrível que pareça, não diria nada. Não mudaria nada. Fiz o melhor que pude com o que tinha, e a vida se encarregou do resto. Lutei, aprendi e nunca parei. Tenho orgulho e respeito pelo Thierry de 8 anos, que me trouxe até aqui.
“A vida é entrega”: as raízes de um bailarino
Débora Goes Valdanha Bernardi, primeira professora de Thierry na Escola Municipal de Dança Elizandra Bellotto, em Santa Gertrudes, guarda com carinho as lembranças do menino que um dia ganharia o mundo pelos pés — e pelo coração.
Ela se lembra com nitidez da iniciação de Thierry. “Foi o primeiro menino a se matricular na escola. Ainda no infantil, já demonstrava uma paixão autêntica pela arte. Com o tempo, esse amor só crescia.”
Segundo Débora, Thierry era um aluno dedicado — embora levasse também um lado “bagunceirinho”. “Fica quieto, Thierry!”, ela brinca, recordando as aulas.
Desde cedo, ele demonstrava uma força interior rara. “Era determinado, obstinado. ‘A vida é entrega’, como ele escreveu. Essa frase o define.”
Ver Thierry ser aprovado no Bolshoi foi surpreendente. “Houve um amadurecimento técnico e pessoal muito intenso. Foi um salto. Um ‘boom’.” Para ela, vê-lo alcançar projeção internacional é uma alegria imensa — e também uma lição. “Acho que fui mais aluna dele do que ele meu”, afirma ela num misto de emoções e reflexões. Thierry inspira não só pelo talento, mas pela humildade com que valoriza cada passo da jornada. Mesmo em um mundo onde o ego muitas vezes cresce à medida que se acumulam conquistas, Thierry se mantém firme às raízes e aos valores que o moldaram e a quem esteve ao seu lado.
Débora acredita que Thierry é exemplo vivo de que é possível transformar qualquer cenário simples em um palco de grandeza. Em 2025, a Escola Municipal de Dança Elizandra Bellotto prestará homenagem ao artista. O festival anual terá como tema o universo literário — e entre os autores homenageados estará o próprio Thierry. Seu texto “A vida é entrega” será narrado em uma trilha sonora inédita. Mesmo de longe, ele voltará ao palco onde tudo começou — agora, representado por suas palavras.