‘Crianças terão prejuízos no ensino e precisamos de plano de recuperação’, diz educadora

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ISABELA PALHARES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com os filhos há dois meses longe da escola por causa da pandemia do coronavírus, muitos pais se preocupam com o fato de que eles podem ter aprendido menos do que o esperado. Para a educadora Maria José Nóbrega, é preciso que famílias, escolas e autoridades educacionais reconheçam que os estudantes terão prejuízos acadêmicos.
As crianças menores, especialmente aquelas que estavam em processo de alfabetização, devem ter déficits maiores ao final do período. Considerada uma das fases mais delicadas e importantes da vida escolar, a alfabetização depende de um trabalho contínuo de estímulo, análise e conhecimento de quem vai ensinar.
“Os pais precisam tomar cuidado ao tentar ensinar a criança para não atrapalhar o que já foi desenvolvido pela escola, para não criar um trauma com a escrita. Provavelmente, a forma como os pais foram alfabetizados não é mais como é feito hoje”, disse Maria José, que já trabalhou como assessora pedagógica no Ministério da Educação, em secretarias municipais e estaduais de educação e em colégios particulares, como o Pio XII e Vera Cruz.
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Pergunta – Mesmo com as aulas a distância, as crianças devem ter prejuízo no aprendizado neste ano?
Maria José Nóbrega – Não é possível imaginar que as crianças não terão algum tipo de prejuízo acadêmico neste ano. Todo o planejamento que estava sendo feito para o ano letivo era para a modalidade presencial e as escolas tiveram que se adaptar emergencialmente e pela primeira vez para atuar a distância.
Então, é claro que haverá prejuízo. É o tipo de situação na qual o melhor a se fazer é reduzir os danos e entender que todos estamos passando pela mesma dificuldade. Também precisamos reconhecer que, quanto mais jovem o estudante, mais difícil é a mudança para o modelo remoto. Para as crianças pequenas, está e vai ser mais complicado.

O prejuízo pode ser maior para crianças que estão em processo de alfabetização?
MJN – Sim, especialmente para as crianças de 5 anos, da educação infantil, e 6 anos, no 1º ano do ensino fundamental, que estavam iniciando os processos de introdução à escrita quando as aulas foram suspensas. Entre os educadores, há um consenso de que a alfabetização é um dos períodos mais delicados e importantes da formação escolar.
Precisamos encarar que não há muito a se fazer neste momento. É um problema que uma geração inteira está vivendo e que vamos ter de enfrentar quando as escolas retomarem as atividades presenciais.
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) nos dá tempo para recuperar, porque ela prevê que, se a alfabetização não for consolidada no 1º ano, ela continua no próximo ano. Quando as aulas voltarem, vamos viver um processo de adaptação, rever os currículos e reforçar os conteúdos estruturantes, e a alfabetização certamente é um deles.
Neste momento, as escolas estão mantendo atividades que são possíveis com a mediação dos pais, que não são especialistas. Na volta, é preciso pensar em um diagnóstico preciso para identificar até onde as crianças conseguiram avançar.

O que as escolas podem fazer nessa situação para reduzir os efeitos negativos?
MJN – Para começar, precisamos pensar que as crianças estão aprendendo, mas de uma forma diferente e que vão ter outros aprendizados. Então, é importante que todos façam esforços para que o desenvolvimento delas continue ocorrendo.
Mas é preciso entender que, em sala de aula, principalmente na alfabetização, o professor está muito atento às hipóteses que a criança levanta em relação ao funcionamento da escrita e é a partir delas que conduz o processo. O aprendizado também ocorre muito com a troca entre os alunos. Nessa situação, nós perdemos a riqueza dessas duas situações.
Em algumas escolas com mais recursos, ainda é possível organizar, com plataformas eletrônicas, momentos que se assemelham ao que ocorre em sala de aula. Só que esses encontros online precisam ocorrer com a mediação de adultos, porque as crianças não têm autonomia para acompanhar sozinhas.

Como os pais podem ajudar nesse processo?
MJN – É preciso muito cuidado com as intervenções feitas, já que esse é um processo muito sensível. Os pais não devem tentar substituir os professores, mesmo e especialmente com as crianças pequenas.
A alfabetização exige conhecimento científico. Nem todo professor que fez pedagogia se sente capaz de ser alfabetizador, porque há uma especialização dentro da área. O risco de o pai achar que tem de ser alfabetizador de seus filhos é que ele vai resgatar na memória como foi o seu processo de alfabetização. O ensino de 20, 30 anos atrás era muito diferente, não se tinha os conhecimentos científicos que temos hoje.
Hoje sabemos que a alfabetização ocorre com dois procedimentos. Um deles é a criança entender a relação das letras com o som. O outro é a introdução da criança à cultura escrita para que ela se sinta estimulada a ler. Os pais têm um papel fundamental nessa segunda dimensão, lendo para os filhos com frequência.
Ler em voz alta para uma criança é uma parte do processo. Só os pais podem ler ou propor que cada um leia uma parte do texto, perguntar se a criança consegue achar uma palavra repetida. Pode ser como uma brincadeira, uma atividade leve. Não precisa virar uma aulinha.

Quais cuidados os pais precisam ter para não atrapalhar o processo de alfabetização?
MJN – Uma criança, durante a alfabetização, não vai escrever corretamente, já que ela precisa alcançar outro passo que é descobrir a existência de um sistema ortográfico. Para tratar dessas regras, as escolas fazem um trabalho reflexivo, pedem que as crianças observem e criem hipóteses próprias.
Antigamente, quando a criança escrevia algo errado, o professor mandava escrever a palavra dezenas de vezes para memorizar a forma certa. Essa intervenção resolvia o problema localmente. E foi assim que muitos pais aprenderam e que podem tentar fazer com seus filhos.
Essa abordagem não permite uma reflexão da criança ou que ela veja sentido no que está fazendo. Com isso, escrever se torna uma atividade desestimulante, a criança se sente incapaz. Essa é uma situação que aconteceu com muitos dos adultos de hoje, que por esse tipo de ensino criaram um representação de si de não saberem escrever, de não gostarem de ler.
Exercícios como esse geram angústia na criança, que vai se tornar resistente a estudar e acaba aumentando o estresse doméstico. Ela vai passar a achar que aprender é um horror.

Muitas crianças estão sem acesso a atividades remotas e em casas onde não há nenhuma continuidade ao processo de alfabetização. Quais consequências podem ser esperadas para esses estudantes?
MJN – Essa é uma questão muito séria porque temos um abismo de desigualdade social no país. Isso fica escancarado nas imagens que vemos de pessoas em filas para conseguir o auxílio emergencial para ter o que comer. Ao ver imagens como essas, como esperar que elas tenham acesso à tecnologia para a educação dos filhos?
Corremos grave risco de acirrar ainda mais as desigualdades sociais já há muito tempo conhecidas e muito pouco enfrentadas.
Muitas redes de ensino estão tentando negociar com empresas de telefonia a liberação de pacote de dados para os alunos terem acesso a aplicativos para as aulas remotas. Isso também é um delírio. Não leva em conta o ambiente que o aluno tem em casa para estudar, se tem algum dispositivo móvel, com quantas pessoas ele compartilha esse celular.
É uma situação perversa e que vai exigir um diagnóstico e reforço escolar muito maior nas escolas públicas do que nas particulares.

Crianças sem acesso a nenhuma atividade escolar nesse período podem esquecer o que aprenderam? A alfabetização pode regredir?
MJN – Quando a criança está sendo alfabetizada, muitas vezes a escrita é memorizada, automatizada. Isso acontece, por exemplo, com a escrita do próprio nome. Isso é importante porque é uma fonte para descobrir como o processo de escrita acontece.
É possível que algumas aprendizagens sejam perdidas, principalmente se forem muito incipientes. O que depende de treino e sistematização pode sim recuar e regredir.

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