Uma bíblia, muitas histórias

Sandra Baldessin

O trabalho com a oficina de Literatura para Idosos, realizado em parceria com o Jornal Cidade, propicia a oportunidade do compartilhamento de histórias cujo valor ultrapassa as memórias individuais, trazendo à luz importantes relatos da memória social, coletiva.

A aluna Hedi Maria Duarte, nascida em Berlim, trouxe para o contexto da Oficina um objeto biográfico que media histórias que, por sua abrangência, se tornam patrimônio cultural. Trata-se de uma Bíblia de, aproximadamente, 120 anos, a qual atravessou continentes até ser encontrada pelo pai de D. Hedi, em 1945, defronte a uma prisão na Alemanha nazista.

Em 2015, completam-se os 70 anos do fim da II Guerra Mundial, e D. Hedi, hoje com 78 anos, filha de Josef e Erna Gdaniec, relata as condições de opressão e angústia que vivenciou, ao lado da família, na Alemanha nazista. Sua narrativa vívida, e ainda permeada pela dor de uma experiência inesquecível, traz o testemunho pessoal de uma época marcada pela crueldade.

Hedi faz a doação da obra histórica ao Museu da Bíblia, onde também conheceu réplica da Primeira Prensa de Guttemberg; Clique para ampliar

D. Hedi conta que, no final da II Guerra, a sua família, que se opunha ao nazismo, em fuga chegou à pequena cidade de Ilmenau, localizada na Thuringia. A fuga envolveu passarem três dias, juntamente com centenas de outras famílias, escondidos no depósito subterrâneo de uma cervejaria, sem comida e sem água potável, um lugar frio e úmido, onde ouviam o estrondo das bombas.

Quando saíram do depósito, defronte à prisão de Ilmenau o Sr. Josef Gdaniec encontrou, caída na calçada, em meio aos destroços e à destruição, um exemplar da Bíblia Sagrada, cuja inscrição dava conta de que fora adquirida em Londres, no ano de 1898, por 25 shillings. Depois, foi presenteada, em 1933, a um indivíduo que vivia na Suiça. As inscrições seguintes mostram que passou às mãos de prisioneiros de guerra. Nas palavras de D. Hedi: “Podemos imaginar como essa Bíblia deve ter oferecido conforto e alguma esperança àqueles que estavam numa situação desesperadora, à mercê dos nazistas”.

D. Hedi contou que, após alguns anos do final da guerra, a situação na Alemanha só piorava: “Vivíamos sobre um barril de pólvora, com ameaças de todos os lados, inclusive dos comunistas, por isso, meu pai decidiu imigrar para um país onde houvesse paz, sol e frutas; pediu vistos para a África do Sul e Brasil, mas o visto brasileiro saiu antes, assim, viemos para cá, em 1952”.

A nossa narradora explica que, por estar na adolescência – tinha 17 anos – não queria viajar para um país estranho, e que a imigração foi motivo de grande sofrimento. Embora o pai fosse escritor e professor da Universidade de Berlim, antes da II Guerra, precisaram vir para o Brasil com a “roupa do corpo”, trazendo apenas uma valise com alguns objetos pessoais e a Bíblia, que se tornou uma companheira inseparável da família.

Depois, a jovem Hedi apaixonou-se pelo Brasil, por Rio Claro, onde veio viver com seu “broto”, como ela gosta de dizer, o marido rio-clarense, o empresário Nelson de Almeida Duarte. Foi assim que o Livro Sagrado, uma verdadeira preciosidade, escrito em inglês e contendo, às margens esquerda e direita, excertos dos originas hebraico e grego, veio parar em nossa cidade.

O destino final dessa Bíblia de muitas histórias foi o Museu da Bíblia, localizado em Barueri/SP. Estivemos lá no último dia 12 de agosto, ocasião na qual D. Hedi relatou aos coordenadores a sua experiência com o Livro Sagrado do cristianismo. Ela enfatiza que: “Decorridos 70 anos do fim da II Guerra, agora posso ficar tranquila quanto a isso, sei que essa Bíblia não vai ser jogada no lixo depois de minha partida, vai participar de exposições, vai continuar cumprindo seu papel. Com isso, também se preserva a memória dos meus pais, Josef e Erna, e de um período da história que não podemos aceitar que se repita”.

O Museu da Bíblia – MUBI – é um importante patrimônio cultural do cristianismo brasileiro; é mantido pela Sociedade Bíblica do Brasil, em parceria com o governo do Estado de São Paulo. É aberto à visitação gratuita e oferece um acervo muito interessante para o público de todas as faixas etárias. Para saber como agendar visitas e conhecer mais sobre o MUBI, acesse: .

A colaboradora é escritora e consultora em Comunicação Escrita. sbaldessin@gmail.com

Redação JC: